Não é a primeira vez que nessa série histórica há redução do número de mortes de um ano para outro, sem previsão nem explicação sociológica indiscutíveis. Por exemplo: em 1991 registrou-se uma queda de 153 para 83 em relação ao ano anterior (45%), oscilação sem nenhuma causa detectável. Aliás, essa tendência de redução de mortes violentas foi observada em 2019 na população brasileira em geral, assim como entre transexuais e homossexuais, porém, em 2020, segundo dados oficiais dos 26 estados e distrito federal, houve no Brasil um aumento de 5% nos assassinatos em comparação com 2019. (Monitor da Violência, G1), aumento confirmado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais que registrou um aumento de 41% de mortes entre travestis e mulheres trans. (Antrabrasil Dossiê 2020).
Segundo o prof. Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, “a explicação mais plausível para a diminuição em 28% do número total de mortes violentas de LGBTI+ em comparação com o ano anterior se deve ao persistente discurso homofóbico do Presidente da República e sobretudo às mensagens aterrorizantes dos “bolsominions” nas redes sociais no dia a dia, levando o segmento LGBTI+ a se acautelar mais, evitando situações de risco de ser a próxima vítima, exatamente como ocorreu quando da epidemia da Aids e a adoção de sexo seguro por parte dessa mesma população.” (SILVA, Violência contra LGBTS+ 2020). Comportamento preventivo observado igualmente agora face à pandemia do Coronavírus, em que sobretudo os gays vem desenvolvendo novas e específicas estratégias de sobrevivência.
De acordo com Alexandre Bogas Fraga Gastaldi, Especialista em Gênero e Diversidade na Escola (UFSC) e diretor executivo da Acontece Arte e Política LGBTI+, é necessário olharmos para essa pesquisa como um instrumento que visa denunciar a violência contra a nossa população e infelizmente nosso país figura como um dos lugares mais violentos do mundo para ser LGBTI+. Nestes últimos anos temos visto o aumento de falas com alto conteúdo de ódio dentro e fora da internet, discursos esses que nos matam violentamente e continuam nos excluindo dos espaços sociais. É preciso cobrar diariamente do Estado brasileiro e seus órgãos o compromisso com os direitos humanos sobretudo com as populações mais vulneráveis.
Wilians Ventura Ferreira Souza, geógrafo e mestrando em geografia e um dos organizadores do relatório, ressalta que pertencer ao mundo, mas não caber em lugar algum, a princípio, parece uma enorme contradição, mas não é. Existem corpos que não cabem, ou melhor, não o deixam estar com seus símbolos, seus jeitos, suas falas e múltiplas expressões e performances. A pergunta central para essa reflexão é: em que espaço cabe o meu corpo?
Observa-se durante a construção do relatório uma relevante preocupação com a espacialização das mortes violentas de LGBTI+, dada preocupação é um fruto das reflexões e avanços conquistados no campo das ciências humanas, sobretudo, da geografia nas últimas décadas. Ler, interpretar e avaliar todas estas condições impostas a corpos que não cabem, é também o papel da geografia brasileira, que somente nas últimas décadas tem se dedicado a este objetivo, isto é, a compreensão da violência contra determinados corpos (LGBTI+, negras e negros, mulheres, pessoas com deficiência) e suas escalas derivadas. O primeiro passo para a construção do relatório foi compreender às múltiplas violências e circunstâncias em que elas ocorreram, logo em seguida, mapear as diferentes escalas da morte. Ressaltamos que os mapas são importantes ferramentas e subsídios para a promoção de políticas que se dão nos territórios gerenciados pelo Estado e pelos movimentos sociais.
De acordo com Kayque Virgens Cordeiro da Silva, graduando em Geografia, associada a essa realidade, o Estado brasileiro caracteriza-se pela fragmentação das iniciativas de inclusão dessa população, ilustrando como suas demandas têm sido ou não atendidas, carecendo ainda de respaldo jurídico, por não ser agente de políticas mais organizadamente articuladas. A cada 36 horas um LGBTI+ brasileiro é vítima de homicídio ou suicídio, o que confirma o Brasil como campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais, informação corroborada e ainda mais agravada pelos estudos do próprio Ministério dos Direitos Humanos: em relatório engavetado pelo atual Governo Federal, concluiu-se que em nosso país, entre 1963-2018, a cada 16 horas um LGBT foi assassinado (PREITE SOBRINHO, Relatório LGBT, 2019).
Segundo agências internacionais de direitos humanos, matam-se muitíssimo mais homossexuais e transexuais no Brasil do que nos 13 países do Oriente e África onde persiste a pena de morte contra tal segmento. Mais da metade dos LGBTI+ assassinados no mundo ocorrem no Brasil (WAREHAM, Murder LGBT, 2020). Apesar dessa redução da violência letal observada nos dois últimos anos, devemos pontuar que tais mortes cresceram incontrolavelmente nas duas últimas décadas: de 130 homicídios em média em 2000, saltou para 260 em 2010, subindo para 357 nos últimos quatro anos. Durante os governos de FHC mataram-se em média 127 LGBT por ano; na presidência de Lula 163 e no governo Dilma 296, sendo que nos dois anos e 4 meses de Temer, foram documentadas uma média de 407 mortes anuais, caindo para 283 a média nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro. Enquanto nos Estados Unidos, com 331 milhões de habitantes, mataram-se no ano passado 38 transexuais, no Brasil, com 212 milhões, foram assassinadas 118 trans. Incrível a inexistência de estatísticas globais sobre os homicídios e suicídios de LGBT: esse nosso levantamento, além do mais antigo é único divulgado nacional e internacionalmente. (lgbt-people-violent-deaths-brazil/)
Síntese e Tendências predominantes das mortes violentas de LGBTI+ do Brasil em 2020 Em 2020, 237 LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) tiveram morte violenta no Brasil, vítimas da homotransfobia: 224 homicídios (94,5%) e 13 suicídios (5,5%). Diferentemente do que se repete desde que o Grupo Gay da Bahia iniciou tal pesquisa, em 1980, pela primeira vez em 41 anos, as travestis e mulheres trans ultrapassaram os gays em número de mortes: 161 travestis e mulheres trans (70%), 51 gays (22%) 10 lésbicas (5%), 3 homens trans (1%), 3 bissexuais (1%) e finalmente 2 heterossexuais confundidos com gays (0,4%).
Em termos relativos, nossos relatórios sempre insistiram que as pessoas trans representam a categoria sexológica mais vulnerável a mortes violentas. Esse total de 161 mortes, se referidas a 1 milhão de travestis e transexuais que se estima existir em nosso país, sinalizam que o risco de uma pessoa trans ser assassinada é aproximadamente 17 vezes maior do que um gay. Já que o IBGE não inclui até hoje no censo nacional, malgrado insistente demanda do movimento social organizado (MOTT, denuncia censo LGBT IBGE) estima-se, com base em indicadores diversos produzidos pela Academia, instâncias governamentais e pelo movimento LGBTI+, que existam no Brasil por volta de 21 milhões de gays (10% da população), 12 milhões de lésbicas (6%) e 1 milhão de trans (0,05%). “Quem discordar, que comprove o contrário”, costumam retrucar as lideranças LGBTI+.
Quanto à idade das vítimas, cinco eram “de menor”, a mais jovem, uma travesti de15 anos, moradora em Fortaleza, na Granja Lisboa, foi encontrada agonizante num terreno baldio após levar diversos tiros. 33% das vítimas estavam na flor da idade, entre 15-30 anos e 8% com mais de 46 anos. O mais idoso, com 80 anos, era um gay branco morador em Recife, cego e abandonado pela família, suicidou-se jogando-se do quarto andar de seu prédio. 8,2% dos LGBT+ mortos tinham mais de 46 anos.
O quesito cor é variável bastante descuidada nas matérias jornalísticas, sendo desconhecida para 43% das vítimas. Encontramos 74 pardos e pretos (54%) e 62 brancos (46%), refletindo aproximadamente a mesma tendência demográfica do conjunto da população nacional.
Confirma-se a mesma tendência notada ao longo dessas quatro décadas de pesquisa: os LGBTI+ mortos pertenciam a praticamente todos os estratos sociais, predominando 44,6% de profissionais do sexo, 10,6% cabeleireiros/as, 8,7% de professores/as. Constam ainda entre os morto LGBT+: empresário, estudante, mãe de santo, maquiador, pizzaiolo, representante comercial, advogado, agente de trânsito, agente socioeducativo, aposentado, arquiteto, atriz, dançarino, designer, digital influencer, empregada doméstica, fisioterapeuta, guarda municipal, médico, modelo, auxiliar de serviços gerais, bancário, oficial de justiça, pai de santo, pedreiro, terapeuta holística, vigilante, voluntário. No tocante à tipologia das mortes violentas de LGBTI+ ocorridas em 2020, registramos 215 homicídios (90,7%), seguido de 13 suicídios (5,4%) e 9 latrocínios (3,7%).
Quanto à causa mortis, repete-se a mesma tendência observada regularmente nessas quatro décadas de pesquisa: predomínio de mortes violentas com arma de fogo (42,3%), seguido de armas brancas (23%) e espancamento (9,1%). Registrou-se também uma dezena de diferentes modus operandi nesses crimes homotransfóbicos, muitos dos quais sendo precedidos por tortura e mais crueldades frequentes nos crimes de ódio: estrangulamento, pauladas, atropelamento, queima do corpo, descarga elétrica.
Também quanto ao local dessas mortes, confirma-se a mesma tendência observada desde o início da pesquisa: gays e lésbicas são assassinados dentro de suas residências com objetos domésticos (fios elétricos, almofadas, facas de cozinha) enquanto travestis e transexuais, notadamente as profissionais do sexo, são atingidas por disparos de revólver na pista: 60,8% de tais sinistros ocorreram em espaços públicos (praças, ruas, vias, vielas, terrenos abandonados), seguido da residência da vítima com 23,5% e, por fim, 15,6% em espaços privados (motéis, casas e comércios de terceiros). 3\4 destes homicídios homotransfóbicos ocorreram a noite – evidenciando práticas espaciotemporais típicas de minorias sexuais urbanas que, devido ao estigma, encontram na noite a melhor ocasião para encontros íntimos via de regra clandestinos ou para a prática do lazer na chamada “cena lgbt.” 17% das mortes ocorreram no período matutino e 10% a tarde.
A violência materializada contra corpos de LGBTI+ é, principalmente, uma violência de gênero, atingindo diferenciadamente e a partir de múltiplas intensidades alguns segmentos, sobretudo, travestis e mulheres trans vitimadas em diferentes contextos e realidades socioespaciais. Das 113 travestis assassinadas, 72 (63%) foram executadas em espaços públicos, sobretudo, em ruas e vias, evidenciando um contexto marcado pela “prostituição de pista”: 90% das “meninas da noite” ainda vivem desse metier.
Suicídios de LGBT+ são de dificílima localização nos registros policiais e nas mídias sociais, pois sua subnotificação é ainda superior aos homicídios, sendo agravada por três estigmas: homossexualidade+gênero diverso+morte intencional. Pesquisas internacionais apontam que o índice de suicídios entre jovens LGBT+ é cinco vezes superior ao de heterossexuais. (Suicídios jovens LGBT, 2019). Em 2020 localizamos 13 suicidas, sendo 7 travestis e mulheres trans, 3 homens trans, 2 gays 1 sem identificação de gênero.
Deslocando a análise do perfil das vítimas para suas distribuição espacial, em termos absolutos, o Nordeste ocupa o primeiro lugar em número de morte com 113 casos, seguido do Sudeste com 66, Norte e Sul com 20 mortes cada e o Centro Oeste, 18 mortes. Em termos relativos, isto é, número de mortes por um milhão de habitantes, a média nacional foi 1,28 mortes. O maior índice de violência foi registrado na Região Nordeste, 2,12; Centro Oeste, 1,28; Norte, 1,26; Sudeste, 0,82 e Sul, 0,78.
Nos últimos anos, Nordeste e Norte se revezam nessa sangrenta precedência. O risco de um LGBT+ ser assassinado no Nordeste é quase três vezes maior do que no Sul. Fortaleza, inexplicavelmente, foi a capital mais homotransfóbica no ano passado: 20 LGBT+ mortos, o dobro de São Paulo (10), que é cinco vezes mais populosa. Os índices de criminalidade em Natal são igualmente preocupantes, pois teve o mesmo número de mortes de Salvador (5) que possui dois milhões a mais de habitantes. Pior ainda é a situação de alguns municípios interioranos que tiveram a mesma incidência de crimes letais de outras sete capitais mais populosas: em Alagoas, Rio Largo e São José da Laje e em São Paulo, São Bernardo do Campo. Alagoas desponta como o estado mais violento do Nordeste e do Brasil, acumulando 4,8 mortes para cada um milhão de habitantes, seguido por Roraima no Norte, com 4,4; no Centro Oeste, Mato Grosso, com 1,97; Minas Gerais no Sudeste, com 0,96 e no Sul, o líder dos assassinatos foi Santa Catarina com 0,8 mortes. O risco de uma LGBT+ ser assassinada em Alagoas é 6 vezes maior do que em Santa Catarina.
O ano de 2020 foi marcado pela maior e pior pandemia da história recente. No início de maio de 2021, há um ano do primeiro caso registrado no país, o Brasil se aproxima de meio milhão de óbitos, com perspectivas desanimadoras, potencializadas pela incapacidade, ineficiência e indisposição governamental. O negacionismo do governo federal na condução da pandemia no Brasil chocou o mundo, resultado inclusive em denúncias aos órgãos internacionais.
Quantos LGBTI+ morreram nesta pandemia? Quantas dessas mortes seriam evitáveis, se medidas corretas tivessem sido adotadas pelas autoridades? Quatro vips da tribo LGBT+ morreram de Covid 19: o cantor Agnaldo Timóteo, a esteticista Rudy, o bailarino Ismael Ivo e o ator Paulo Gustavo. Quantos ainda morrerão¿ Quantos LGBT+ tiveram graves conflitos familiares devido ao confinamento social, sendo desalojados, agredidos física e moralmente, passando dificuldades, impedidos de encontrar seus parceiros¿ Quantas travestis de pista estão passando enormes privações materiais e stress devido às restrições de circulação urbana?
Talvez uma das explicações para o aumento em 41% do número de trans e travestis assassinadas durante esse primeiro ano de pandemia se deve ao fato de que gays e rapazes de programa receosos da Covid 19 deixaram de frequentar os locais de “pegação” e seus clientes e parceiros procuraram mais então, alternativamente, às trans profissionais do sexo, surgindo desentendimentos e atritos de relacionamento, que redundaram no crescimento da violência letal contra o segmento mais vulnerável. A redução do policiamento ostensivo nas ruas, sobretudo à noite, como protocolo preventivo da epidemia, certamente facilitou as agressões e mortes contra as “damas da noite”.
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